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O que estamos aprendendo sobre Educação a Distância durante a pandemia do Covid-19

Updated: Jun 4, 2020

A pandemia do COVID-19 em 2020 (não sabemos se vai parar mesmo por aqui) acrescentou um novo capítulo — e essencial — à história das práticas da educação a distância (EaD). Em muito pouco tempo (ao redor de três meses, quando escrevo este post), ocorreram mudanças jamais previstas e que poderiam nunca ter acontecido, ou levado anos ou décadas para se concretizar.


Têm ocorrido debates interessantes sobre o quanto a educação a distância funcionou durante a pandemia, quais foram os problemas, se estamos fazendo EaD ou ensino remoto, se a EaD é um remendo, por quanto tempo as aulas continuarão assim, se a partir de agora faremos mais blended learning do que ensino presencial etc. Mas a perspectiva deste post é outra: o que nós, que trabalhamos com educação a distância, aprendemos em relação ao que fazemos? Que contribuições a pandemia trouxe para a teoria e a prática da EaD? Como estamos sendo obrigados a repensar o que fazemos? O que faremos diferente, em educação a distância, no novo normal?


Em primeiro lugar, ficou claro que é necessário trabalhar com as competências digitais de professores, alunos e gestores de escolas e instituições de ensino superior (IES). Observamos muitos problemas, então um reforço no desenvolvimento dessas competências será estratégico no período pós-pandemia. Nesse sentido, cabe chamar a atenção que excelentes frameworks desenvolvidos pela , como os DigComps (1.0, 2.0 e 2.1) e o DigCompEdu, abordam “as competências relacionadas ao uso das tecnologias em sala de aula presencial, praticamente não levando em consideração o universo da educação a distância ou mesmo do blended learning [...]” (Mattar et al., 2020). Não foi esse o objetivo de sua elaboração, e o sentido e a prática da EaD são distintos na Europa e no Brasil, mas a pandemia do COVID-19 reforçou que são necessários frameworks de competência digital que levem em consideração a teoria e a prática da EaD.


Em segundo lugar, vivenciamos que é possível fazer educação a distância sem polos de apoio presencial, ainda que seja legítimo discutir a qualidade do que se fez em EaD durante a pandemia. Mas fomos também relembrados de que a exclusão digital ainda é um grande empecilho para o desenvolvimento da educação a distância. Tait e O'Rourke (2014) discutem as relações entre a educação a distância online e a justiça social. Um dos argumentos dos que defendem a EaD é que a modalidade contribuiria para a expansão do acesso à educação. Assim, a provisão de acesso a grupos aos quais tradicionalmente essa oportunidade teria sido negada seria uma contribuição essencial da educação a distância para a justiça social. Paradoxalmente, no entanto, a modalidade também sofre críticas, pois pode também contribuir para ampliar a exclusão social, por meio da expansão do fosso digital. O que a pandemia jogou com força nas nossas caras é que em vários países, como, por exemplo, no Brasil, muitos dos estudantes que mais se beneficiariam do acesso à educação a distância simplesmente não têm equipamentos e/ou acesso à Internet que permitam que efetivamente se beneficiem. Esse foi um dos principais argumentos em função dos quais muitas instituições de ensino superior (IES) públicas no Brasil decidiram não oferecer suas aulas a distância durante a pandemia.


Mas isso nos levou também a um terceiro aprendizado: a liderança para conduzir as mudanças necessárias ao desenvolvimento da educação a distância não sairá, necessariamente, de onde mais esperamos. O que a sociedade brasileira, por exemplo, esperaria, em um momento de crise como este que estamos vivendo, é que as IES públicas, que concentram boa parte das pesquisas no país, conduzissem a inovação e as mudanças necessárias no ensino, principalmente na educação básica. Mas o que aconteceu? O professor Vianney, em seu post “Por que a UFSC proibiu a difusão do conhecimento?”, reflete sobre o que ocorreu na Universidade Federal de Santa Catarina (IES de destaque internacional, uma das pioneiras em EaD no Brasil e ativa na UAB — Universidade Aberta do Brasil), que, como outras IES públicas no país, não só não assumiram o papel de liderança e protagonismo que esperaríamos no ensino em uma época de crise, mas decidiram não oferecer aulas para seus próprios alunos durante a pandemia (com argumentos legítimos, um dos quais já comentamos aqui), enquanto Secretarias Municipais e Estaduais e escolas de educação básica — e até infantil — conseguiram reagir sozinhas, e muito rapidamente, colocando a mão na massa e não abandonando seus alunos. Aprendemos com a pandemia que não é das Instituições de Ensino Superior públicas que, necessariamente ou apenas, sairá a liderança de que precisamos para conduzir as mudanças necessárias para o desenvolvimento da educação a distância.


A pandemia também nos chamou a atenção para o fato de que a transição da educação presencial para a educação a distância não é, ainda, fácil como poderíamos imaginar. Parece que não caminhamos muito neste ponto, nestas décadas. Estamos vivenciando dificuldades de todos os tipos, que, se de um lado são explicáveis pelo tsunami que engoliu a todos nós, de outro lado deixam patente quanta mudança a consolidação da EaD carrega consigo. A EIPP - Unidade de e-Learning e Inovação Pedagógica do Politécnico do Porto, por exemplo, coordenada pela professora Paula Peres, desenvolve um trabalho em que educação a distância, inovação e mudanças caminham juntas. Não é possível pensar e praticar EaD sem uma teoria da mudança e da inovação como suporte.


Relacionado ao aprendizado anterior, ficou também patente que todo mundo acha que sabe fazer educação a distância: boa parte das pessoas que não tinham sido introduzidas à EaD foi lá e fez do seu jeito. Brotaram muitos especialistas em educação a distância durante a pandemia! Se é essencial reconhecer o protagonismo de muitas pessoas em um momento tão delicado quanto o que estamos vivendo, a pandemia também nos ensinou que não há um claro reconhecimento social em relação ao que fazem os profissionais que estudam, pesquisam e trabalham com EaD: muitos deram lives, alguns escreveram posts neste e em outros blogs, as empresas rapidamente se posicionaram para oferecer seus serviços, mas houve pouco movimento de solicitação de apoio à comunidade de educação a distância, mesmo que todos estivessem prontos para colaborar. A pandemia trouxe para nós, pesquisadores e estudiosos da EaD, a constatação de que nossa função social não é claramente reconhecida.


Um exemplo que reforça o aprendizado anterior é que o movimento mais visível para reagir à pandemia foi de reprodução do que fazemos no presencial: uma corrida às plataformas de webconferência (Microsof Teams e Zoom, por exemplo) para... “dar aulas” expositivas. Toda a centenária e rica teoria de aprendizagem em educação a distância, que nos ensina justamente a não fazer isso, foi simplesmente ignorada, como a teoria da distância transacional (Moore, 2002), a COI — Community of Inquiry (Garrison, Anderson, & Archer, 2000) e a teoria da aprendizagem colaborativa online (Harasim, 2017). Foram também ignorados os princípios das metodologias ativas (Mattar, 2017), da interação em educação a distância (confira o número especial da TECCOGS — Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, 2014) e meta-análises, como uma clássica de estudos que comparam resultados da educação presencial e a distância, que conclui: “[...] a divisão em atividades síncronas teve mais efeito em relação ao êxito na educação presencial, e as atividades assíncronas para a educação a distância.” (Bernard et al., 2004, trad. nossa).


Nesse sentido, vivenciamos também, durante a pandemia, que é possível fazer educação a distância sem conteúdo pronto. Ou seja, o improviso e a prática sem teoria acabaram nos mostrando que EaD não precisa ser sinônimo da exclusão da docência do processo de ensino e aprendizagem, com a transformação do professor em conteudista e a exploração do tutor. Os professores podem ser autores e docentes na educação a distância, mantendo contato com seus alunos, como ocorre na educação presencial, mesmo que de maneiras diferentes. Mesmo que professores tenham sido lançados à EaD por imposição de escolas e IES, o conceito de docência online independente, desenvolvido pelos irmãos Tractenberg há anos e que se opõe à concepção de uma EaD conteudista, mostrou-se retroativamente profético.


Nesse mesmo sentido, aprendemos que há um movimento de liquefação dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs) em direção às redes sociais, aos apps e, agora (o que ficou claro na pandemia), aos ambientes de webconferência. As mudanças para o desenvolvimento da EaD não envolverão mais necessariamente os AVAs ou LMSs, nem mesmo talvez os NGDLE – Next Generation Digital Learning Environments, mas alternativas mais simples – teremos que desenvolver uma pedagogia da evanescência.


A pandemia também deixou claro que existe (ainda) um preconceito muito forte em relação à educação a distância, um questionamento social de sua prática. Seria possível fazer uma coleção enorme de adjetivos depreciativos contra a modalidade (que, afinal, teve um papel essencial para evitar um blackout do ensino mundial) utilizados por gestores, professores, sindicatos, alunos, pais etc. Mas escolhi aqui apenas alguns exemplos recentes de tweets:


Aprendemos também que existe uma percepção social de que é mais barato fazer ou oferecer educação a distância. Os pais de filhos que frequentam escolas particulares e os alunos do ensino superior têm pressionado intensamente por redução nos valores das mensalidades, sendo que, em praticamente todos os casos, os custos dessas instituições aumentaram com a oferta da EaD durante a pandemia, em função dos gastos com novas tecnologias, Internet, formação de professores etc. — além da manutenção de praticamente todos os custos associados ao presencial. Cabe lembrar que Zawacki-Richter e Anderson (2014) realizaram uma revisão de literatura nos principais periódicos internacionais sobre educação a distância, com o objetivo de identificar as linhas de pesquisa em educação a distância online. Foram identificadas 15 áreas de pesquisa, sendo “custos e benefícios” a mais deficiente em número de estudos, representando apenas 1,7% do total das pesquisas. Os autores concluem que custos é uma área de pesquisa negligenciada em EaD, que não se conhece com clareza o impacto dos custos na educação a distância online, além de não estarem sendo realizados estudos comparativos com a educação presencial. Apesar de a estrutura dos custos e da economia da educação a distância ter sido relativamente compreendida nos anos 1990, agora seriam necessários estudos mais detalhados.


Outro ponto para o qual a pandemia nos chamou a atenção é a importância da educação aberta e dos recursos educacionais abertos (REAs). Para enfrentar uma crise mundial, todo mundo se abriu: empresas de produção de conteúdo, editoras, instituições de ensino etc. Houve um reconhecimento social de como é essencial, para o progresso da educação, compartilharmos recursos. Aprendemos com a pandemia por que associações e periódicos estão alterando em seus nomes as expressões Distance Education (DE) para Open and Distributed Learning (ODL). Confira The International Review of Research in Open and Distributed Learning, um dos peródicos mais importantes na área. A ABED — Associação Brasileira de Educação a Distância, por exemplo, disponibiliza uma série de recursos em sua midiateca. O livro Educação aberta online: pesquisar, remixar e compartilhar (Litto & Mattar, 2017), editado pela ABED, é um REA e pode ser baixado gratuitamente. Cabe também destacar o OpenEdu, um framework desenvolvido para instituições de ensino superior também pelo JRC.


Também aprendemos que não se trabalha menos com EaD. Os professores estão sobrecarregados, no limite, mas também estão se sentindo assim os pais, que foram obrigados a se envolver nas tarefas das crianças em suas residências. EaD não é mais barata do que a educação presencial, mas tampouco é menos trabalhosa – nem para as escolas e as IES, nem para os professores, nem para os alunos.


Por fim, um último aprendizado. Harasim (2017) chama a atenção para a importância da teoria da andragogia para a educação a distância, pois a modalidade estaria, a princípio, voltada para o ensino de adultos. Mas a pandemia nos mostrou que a EaD pode servir a todos: é possível fazer EaD na educação básica, mas é possível fazer EaD também na educação infantil. E, nesse sentido, temos que desenvolver urgentemente teorias que suportem a utilização da educação a distância para jovens e crianças, mesmo porque fomos obrigados a nos lançar a essa prática, sem manual, e essa situação poderá perdurar — ou se repetir.


Referências


BERNARD, Robert M.; ABRAMI, Philip C.; LOU, Yiping; BOROKHOVSKI, Evgueni; WADE, Anne; WOZNEY, Lori; WALLET, Peter Andrew; FISET, Manon; HUANG, Binru. How does distance education compare with classroom instruction? A meta-analysis of the empirical literature. Review of Educational Research, v. 74, n. 3, p. 379–439, 2004.


GARRISON, D. Randy; ANDERSON, Terry; ARCHER, Walter. Critical inquiry in a text-based environment: computer conferencing in higher education. The Internet and Higher Education, v. 2, n. 2, p. 87–105, 2000.


HARASIM, Linda. Learning theory and online technologies. 2nd ed. New York: Routledge, 2017.


LITTO, Fredric M., MATTAR, João (org.). Educação aberta online: pesquisar, remixar e compartilhar. 1. ed. São Paulo: Artesanato Educacional, 2017.


MATTAR, J. Metodologias ativas para a educação presencial, blended e a distância. São Paulo: Artesanato Educacional, 2017.


MATTAR, J.; PIOVEZAN, M. B.; SOUZA, S.; SANTOS, C. C.; dos SANTOS, A. I. Critical presentation of the European Digital Competence Framework (DigComp) and related frameworks. Research, Society and Development, v. 9, n. 4, 2020.


MOORE, Michael G. Teoria da Distância Transacional. Tradução de Wilson Azevêdo, revisão de José Manual da Silva. Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a Distância, v. 1, 2002. DOI: https://doi.org/10.17143/rbaad.v1i0.111.


TAIT, A.; O’ROURKE, J. Internationalization and Concepts of Social Justice: What Is to Be Done? In: ZAWACKI-RICHTER, Olaf; ANDERSON, Terry (org). Online distance education: towards a research agenda. Edmonton, Athabasca University Press, 2014. p. 39–73.


TECCOGS - Revista Digital de Tecnologias Cognitivas, n. 9, jan./jun. 2014. Programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) / PUC-SP. Disponível em: http://www4.pucsp.br/pos/tidd/teccogs/edicao_completa/teccogs_cognicao_informacao-edicao_9-2014-completa.pdf.



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